Crimes em série na Amazônia

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Revista Piauí
Hellen Guimarães
16 de dezembro de 2021
Amazônia brasileira

 

Estudo mostra como desmonte de sistema de fiscalização contribuiu para acirramento de conflitos, incentivou atividades ilegais e causou danos irreversíveis à floresta

 

Um estudo inédito do Amazônia 2030, grupo que reúne pesquisadores de diversas áreas para desenvolver um plano de ações para a Amazônia brasileira, mostra que nos últimos anos a violência na região explodiu em consequência do acirramento de conflitos decorrentes de grilagem, extração ilegal de ouro e madeira e tráfico de drogas. Obtido pela piauí com exclusividade, o trabalho aponta que medidas de regulação sem fiscalização adequada acabaram por criar gargalos estruturais ainda maiores para a preservação da floresta. E a atuação do governo Bolsonaro deu a movimentos ligados ao extrativismo ilegal uma força política de projeção nacional sem precedentes.

Segundo o relatório “Ilegalidade e Violência na Amazônia”, os níveis de violência na região, que eram relativamente baixos até o fim dos anos 1990, crescem de modo contínuo desde o início dos anos 2000. De 1999 a 2019, os municípios pequenos da região amazônica (isto é, aqueles com menos de 100 mil habitantes) apresentam um “excesso de violência” se comparados aos outros municípios brasileiros de mesmo porte: a diferença das taxas de homicídio entre a Amazônia e o resto do país corresponde a um total de 12.610 homicídios a mais na região. Municípios amazônicos sob maior risco de atividades ilegais associadas a grilagem e extração de madeira e ouro são responsáveis, em média, por 70% desse “excesso de violência”. Mas esse percentual começa a cair a partir de 2015, quando há uma generalização da violência na região. Um dos motivos é a maior relevância do tráfico internacional de drogas na Amazônia.

“A violência relacionada ao risco ambiental e à possibilidade de ilegalidade em atividades extrativas de recursos naturais é razoavelmente previsível, é possível identificar o local que está sujeito àquele risco. Já o tráfico é mais difícil porque ele é fluido, não existe um lugar específico, considerando-se que o Brasil é uma rota, não um centro de produção. Existe um aumento de violência nessas rotas do tráfico, esses municípios estão ficando bem mais violentos do que eram”, explica o economista Rodrigo Soares, um dos autores do estudo, assinado também pelos economistas Leila Pereira e Rafael Pucci.

A maior presença do tráfico, porém, é insuficiente para explicar a generalização de altos níveis de violência nos municípios da região. Segundo o relatório, eles provavelmente refletem uma generalização também da ilegalidade no local, o que só aumenta os desafios regulatórios e de monitoramento.

“O principal objetivo do estudo é chamar a atenção para esses problemas. Às vezes, existe um discurso de que a pequena ilegalidade, o pequeno garimpeiro, o pequeno grileiro, não traz qualquer prejuízo, que estaríamos coibindo o empreendedorismo econômico dessa pessoa e que temos que deixar que ela busque essas atividades… a primeira coisa é entender que existe um prejuízo muito grande em termos de violência quando falamos desses mercados funcionando à margem da legalidade. Existe uma evidência vasta, inclusive para o contexto amazônico, relacionada a isso”, lembra Soares.

Como a ascensão do tráfico é um fenômeno mais recente nesse aumento contínuo de violência na região amazônica, três atividades ligadas a crimes ambientas norteiam a discussão proposta pelo artigo: ocupação irregular de terras, extrativismo ilegal de madeira e mineração ilegal. O estudo traça um panorama histórico das medidas de regulação dessas atividades para compreender que tipo de incentivo elas receberam ao longo do período.

 

Em meados dos anos 1990, a intensa exploração do mogno fez aumentar o receio de que a madeira acabasse extinta. Uma série de medidas muito restritivas foram aplicadas tentando evitar o esgotamento do recurso. Inicialmente, havia um plano de manejo, que consistia em manter um cadastro de produtores autorizados a extrair o mogno seguindo esse planejamento. Numa canetada, 85% dessas licenças foram suspensas e, em seguida, a extração da madeira foi banida de vez.

“Todos esses produtores foram jogados na ilegalidade do dia para a noite. Há evidências muito fortes de que essa proibição, quando entrou em vigor, não teve efeito prático nenhum sobre a extração. O mogno continuou a ser retirado, mas era vendido como se fosse outra madeira. Nesse período, enquanto isso estava acontecendo, você tem uma explosão de violência nas áreas onde havia ocorrência natural de mogno, que é uma madeira com área de ocorrência muito específica, muito maior do que em outras áreas da própria Amazônia onde não havia mogno. A legislação ficou muito agressiva, culminando na proibição, mas na verdade os instrumentos de monitoramento e punição do governo eram muito restritos, então a capacidade de detectar a extração ilegal e punir as pessoas ou os municípios que estivessem fazendo isso era muito limitada”, lembra Soares.

O cenário começou a mudar em meados dos anos 2000, com a inauguração de um sistema de monitoramento com imagens de satélite diárias mapeando áreas de desmatamento. Concomitantemente, houve a estruturação de um arcabouço institucional para punir o desmatamento – por exemplo, com corte de crédito para produtores rurais de municípios que estivessem desmatando demais.

“O resultado é uma queda significativa do desmatamento na Amazônia; uma queda na exploração de mogno disfarçado como outra madeira e, junto a isso, uma queda da violência. Esse episódio é interessante porque mostra os dois lados: se você tem um Estado com uma regulação muito forte e com capacidade de monitorar e punir, isso pode funcionar. É o que acontece na segunda metade dos anos 2000 em termos de extração de madeira: a combinação do desenvolvimento tecnológico, com as imagens de satélite, que permitiam um monitoramento muito mais próximo do que estava acontecendo, com o desenvolvimento do arcabouço institucional capaz de traduzir esse monitoramento em punição”, explica Soares, ponderando:

“Por outro lado, se você tiver uma regulação muito forte com capacidade de monitoramento muito pequena e sem capacidade de punir, na verdade o que você acaba fazendo é simplesmente jogar todo mundo para a ilegalidade. Você acaba tirando os agentes do mercado que não querem estar envolvidos em violência e ilegalidade da região, e eles são substituídos por outros”, adverte.

 

Em relação à ocupação irregular de terras, outra medida regulatória acabou criando um incentivo à ilegalidade: o Cadastro Ambiental Rural (CAR). O instrumento autodeclaratório pretendia organizar e regular o uso de terras já ocupadas, algumas desde os projetos de colonização da floresta promovidos pelo governo federal nos anos 1970 e 80, mas que até então não tinham título de propriedade.

“O problema é o seguinte: existe no Brasil em geral, e na Amazônia em particular, uma tradição de indefinição de direito de propriedade no uso da terra, que gera constantemente o incentivo para tentativas de apropriação privada de terras públicas. Isso remonta à ideia do usucapião, algo que já faz parte do inconsciente coletivo brasileiro. Teórica e legalmente, floresta pública não destinada não está sujeita à lei do usucapião. Ainda assim, claramente, as pessoas têm a expectativa de que, se ocuparem aquela floresta pública por um tempo suficientemente longo, vão acabar levando um título. Acho que isso está por trás de todas as tentativas históricas de regularização fundiária, e o CAR, na verdade, criou uma forma mais fácil de fazer isso. Agora, talvez você nem precise incorrer no custo de colocar o mesmo número de cabeças de boi que precisava antes. Está lá o registro de que fulano usava essa terra em 2018 para fins produtivos, um documento do governo dizendo isso. Virou uma tecnologia mais barata de tentar, sem nenhuma garantia, mas com custo baixíssimo, estabelecer um direito informal sobre uma região com expectativa de regularização fundiária futura”, avalia Soares.

O economista destaca que isso se difundiu a tal ponto que quase todos os municípios amazônicos que têm florestas públicas não destinadas contam com CARs sobrepostos a elas – às vezes, até a metade da área dessas florestas. Considerando a capacidade de monitoramento da tecnologia atual, ele considera relativamente fácil resolver esse problema: aplicar um sistema digital que identificasse e travasse uma tentativa de registrar CAR em áreas de florestas públicas não destinadas, por exemplo. Outra urgência é a destinação dessas florestas públicas para protegê-las, algo que já foi iniciado por alguns governos estaduais na região.

“São coisas simples que ajudariam a minimizar o prejuízo no futuro e, tendo o alinhamento político correto, é possível fazer isso. Obviamente, hoje, não existe diálogo. Esse tipo de iniciativa não vai ser tomada agora, no governo atual, mas também esse governo não vai durar para sempre. Em algum momento, alguém vai assumir, alguma racionalidade vai retornar para a política pública da área ambiental e acho que é bom a gente já saber aonde vai. Acho que à parte dos prejuízos ambientais óbvios, o que a gente está gerando também, muito provavelmente, é uma bomba-relógio em termos de regularização fundiária. É possível que esse discurso de atores públicos que incentiva claramente a grilagem esteja contribuindo para o aumento de violência mais generalizado recente”, ressalta.

Por fim, em relação à extração ilegal de ouro, que prolifera em terras indígenas e unidades de conservação, também a regulação (ou, no caso, a retirada desta) agravou o problema na região amazônica. Em 2013, houve uma flexibilização no mercado de ouro, desobrigando os postos de compra de ouro bruto a ter responsabilidade legal sobre a documentação atestando a origem do ouro adquirido. O resultado é que esses agentes do mercado, que antes auxiliavam na fiscalização, não precisavam mais fazer isso, o que facilitou a lavagem do minério extraído ilicitamente e criou um grande incentivo à extração ilegal.

“É difícil imaginar que o Estado será capaz de estar presente em cada quilômetro quadrado da Amazônia para monitorar o que cada pessoa está fazendo. O que você quer é, de certa forma, fazer com que o primeiro comprador de ouro ou madeira tenha medo de estar comprando um produto extraído ilegalmente. Você quer passar esse incentivo para toda a cadeia porque você coloca esses intermediários como parte do mecanismo de monitoramento do Estado. Porque, lá na ponta, há milhares de agentes, de forma mais fragmentada do que o governo é capaz de monitorar cotidianamente”, explica.

Se a missão já era ingrata, ela ficou bem mais difícil nos últimos anos. Durante o governo Bolsonaro, houve um desmonte dos mecanismos de fiscalização e monitoramento da floresta, além de um apoio explícito à exploração de terras indígenas. Há pouco mais de um mês, o presidente visitou um garimpo ilegal em terra indígena. Não bastasse, na mesma semana em que o governo Bolsonaro começa a analisar a inclusão de garimpeiros e pecuaristas como povos tradicionais, o que, na prática, garantiria a eles a exploração indiscriminada dos recursos naturais do país, a Folha revelou que o general Augusto Heleno autorizou sete projetos de garimpo em área preservada da Amazônia, onde vivem 23 etnias indígenas. Reconstituir esse sistema de fiscalização e controle, porém, pode ser mais possível do que se imagina à primeira vista.

“Obviamente, houve uma flexibilização muito grande, para usar um eufemismo, do que eram os protocolos de fiscalização e punição. Aconteceu muita coisa num nível infralegal e administrativo simplesmente mudando prioridades, mudando a direção da cobrança da instituição… O ponto positivo é que uma parte do que aconteceu de bom lá nos anos 2000 é basicamente tecnologia, e essa tecnologia só continua sendo aprimorada. Em termos de legislação, minha impressão é que muito desse afrouxamento se deu em termos de normas e protocolos de atuação, então também são coisas que podem ser revertidas. Essa tecnologia, esse know-how, os instrumentos estão todos na mesa e poderiam estar sendo usados, mas simplesmente não estão. Acredito que quando houver uma mudança de prioridades do governo e eles voltarem a ser usados, eles serão efetivos e aquele sucesso pode ser novamente alcançado”, projeta Soares.

Para ele, há dois problemas maiores de longo prazo nessa tentativa de reverter o estrago causado nos últimos anos. O primeiro é a aceleração da degradação da floresta, que leva muito tempo para se recompor e não consegue fazer isso da mesma forma que antes. A pior parte, porém, é o empoderamento dos grupos ligados a essas atividades ilegais durante a gestão bolsonarista.

“Você meio que deixou o gênio sair da garrafa, no sentido de que, agora, com o apoio quase explícito de várias autoridades federais, você criou grupos de interesse organizados em torno de várias dessas atividades ilegais, seja de mineração ilegal, seja de ocupação irregular de terras, seja de desmatamento ilegal. Isso foi abraçado, às vezes até explicitamente, por várias esferas do Executivo, e isso, de certa forma, deu uma força política a esses grupos que não existia antes. O que me preocupa num retorno eventual do uso da tecnologia e da capacidade institucional de monitoramento que a gente tem, e que usávamos antes, vai ser uma resistência política organizada que talvez ainda não estivesse presente nesses episódios anteriores. Sempre esteve presente, mas não com a expressão e a força a nível nacional de hoje”, alerta.

 

Texto original disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/crimes-em-serie-na-amazonia/