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Alexa Vélez, Vanessa Romo e Italo García
Folha de São Paulo
25 de abril de 2025
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Projeto para conectar comercialmente o Peru e o Brasil teria consequências não só ambientais como pode levar ainda mais caos para a região onde operam grupos ligados ao tráfico de drogas
O sol caía sobre o rio Abujao, próximo à fronteira do Peru com o Brasil, quando o barco do líder indígena Jorge Pérez ficou sem combustível. Eram 17h de uma tarde de novembro e só lhe restava remar até o povoado mais próximo, para continuar no dia seguinte sua viagem até Pucallpa, capital da região amazônica de Ucayali, no Peru. Quando a ponta do seu barco tocou a costa, quatro pessoas, entre jovens e adultos, saíram do matagal.
“Quem é você? Nunca te vi antes”, disse um dos mais jovens. “Eu vivo aqui. Acho que você está enganado. É a primeira vez que eu te vejo, isso sim”, respondeu o líder indígena, com a firmeza de quem percorre o rio Abujao há mais de 20 anos.
Pérez narra que estava ciente do perigo quando percebeu que os quatro portavam armas de fogo de longo alcance. Ergueu o olhar e viu que no mato havia mais 20 pessoas. “Não sou o único habitante que passou por isso, mas, como todas essas pessoas são de fora, estão sempre averiguando se você é policial”, conta o líder indígena, que, por segurança, nos pede para proteger seu nome.
Nos últimos cinco anos, a presença de migrantes de Ayacucho e Apurímac se intensificou ao longo do rio Abujao, no distrito de Callería, e também houve um aumento da invasão das terras indígenas ashaninkas e shipibas.
Por que Jorge Pérez foi interceptado por esse grupo armado? Em um primeiro momento, ele não sabia ao certo com quem estava lidando, mas suas suspeitas se confirmaram no dia seguinte, quando, às 5h da madrugada, ouviu um barulho constante de teco-tecos na região. Embora a presença de cultivos ilícitos de folha de coca em Abujao remonte há aproximadamente 20 anos, os habitantes entrevistados por esta reportagem confirmam que, nos últimos cinco anos, a região se tornou “zona vermelha”, como chamam o lugar onde operam grupos ligados ao tráfico de drogas, especificamente de pasta básica de cocaína.
Suas declarações foram confirmadas pelos relatórios da Comissão Nacional para o Desenvolvimento e Vida sem Drogas (Devida), órgão do governo peruano.
A esta região da Amazônia peruana, porém, deve-se somar um risco a mais: a construção da rodovia Pucallpa-Cruzeiro do Sul, um projeto viário para conectar comercialmente o Peru e o Brasil. Uma interconexão que evoca o fantasma da rodovia interoceânica, uma das infraestruturas viárias mais caras do Peru e construída pela empresa brasileira Odebrecht, envolvida em uma investigação sobre o pagamento de propinas para funcionários do governo peruano. Como o objetivo de conectar os dois países, provocou a perda de ao menos 177 mil hectares de florestas nativas, segundo o relatório do Projeto de Monitoramento da Amazônia Andina (MAAP, na sigla em inglês).
A proposta da rodovia Pucallpa-Cruzeiro do Sul já foi submetida a estudos, análises e críticas de cientistas, organizações indígenas e ambientais. A última rota desenhada para essa via percorre paralelamente a bacia do rio Abujao e atravessa ao menos dez comunidades shipibas e ashaninkas, como Bethel, Betania, Santa Rosita de Abujao e San Mateo, na fronteira com o Brasil.
Da mesma forma, segundo especialistas consultados por Mongabay Latam, esse trecho viário cortaria um corredor de biodiversidade que começa no Parque Nacional Sierra del Divisor (homônimo do parque brasileiro) e na Reserva Indígena Isconahua e termina do outro lado do que seria essa rodovia, na zona de Influência da proposta da Área de Conservação Regional (ACR) de Alto Tamaya – Abujao.
Mas isso não impediu que, de tempos em tempos, volte a ser reativada. Desta vez, por interesses de autoridades regionais de Ucayali, como do governador Francisco Pezo Torres, e do Brasil. Sem contar o Congresso da República do Peru, onde um parlamentar de Ucayali apresentou um projeto de lei para declarar a rodovia de interesse nacional.
Do lado do Brasil, o interesse por essa via aumentou com a chegada de Jair Bolsonaro à presidência em 2019. Após 18 anos, não há fantasma no momento que detenha o avanço desse projeto.
Do lado peruano, chegaram a desenvolver até três trechos distintos, alguns deles contemplavam atravessar o Parque Nacional Sierra del Divisor ou a Reserva Territorial Isconahua, lar de indígenas em isolamento voluntário. O governo regional de Ucayali decidiu a certa altura aguardar os estudos técnicos para avaliar qual seria a melhor rota. Sete anos depois, Provias Nacional, órgão do Ministério de Transportes e Comunicação do Peru, lançou uma convocatória para o desenvolvimento de um “Estudo de pré-investimento em nível de perfil”. Este foi aprovado em 2013 e prevalece o trecho que percorre paralelamente o rio Abujao. Administrativamente, esse foi o último capítulo da rodovia.
Luis Dávalos, especialista de The Nature Conservancy, organização ambiental que analisou com outras instituições os possíveis impactos dessa via, explica que o projeto “não avançou em termos técnicos, mas há avanços, sim, em termos políticos, promovidos principalmente pelo Brasil”.
“Vamos ter uma passagem para o Pacífico, onde chegaremos por via terrestre”, disse Bolsonaro em outubro do ano passado. Em reação, o vice-governador regional de Ucayali, Ángel Gutiérrez, respondeu dizendo aos meios de comunicação locais que “este era o momento de integração”. Para Gutiérrez, os atrasos existentes se devem mais à negligência das autoridades nacionais, ante o que considera uma obra importante para a economia nacional. “Mas nós”, destacou, “estamos empenhados em pressionar, porque senão continuaremos [nos próximos] 20 a 30 anos na mesma situação”.
NOVA ZONA DE COCA
“Por que estão aqui? Aqui ninguém fala da coca, é muito perigoso”. Essa frase se repetia, com palavras diferentes, em cada comunidade do rio Abujao visitada por esta reportagem. O percurso pela região, que devia durar quatro dias, precisou ser reduzido pela metade, por causa da chegada de pessoas estranhas às comunidades, fazendo perguntas e pedindo explicações sobre a nossa presença na região.
“É melhor irem embora, porque podem sair sem vida”, disse o líder de uma das comunidades, que pediu para omitir seu nome. Ele também temia que as represálias pudessem afetar mais tarde os moradores da região.
A tensão é uma constante ao longo do Abujao. Por isso, embora muitos moradores queiram denunciar o que ocorre nessa bacia, ninguém pode fazê-lo publicamente por medo da reação dos traficantes de drogas. E a nova via seria instalada em meio a essa paisagem, onde os indígenas e as populações locais hoje aprendem a conviver com a violência.
“Se você não incomodá-los, estará a salvo”, disse Edgar, um indígena shipibo que vive na região há mais de 50 anos. A mudança foi abrupta, assegura, pois deixaram de se sentir livres para viver em uma espécie de prisão, sob vigilância constante. Nada do que acontece em Abujao passa despercebido aos colonos que se instalaram na região nos últimos anos. “Eles são os que vieram derrubar a floresta e plantar coca. E não semeiam um hectare, mas 20 a 50 hectares”, relata Ernesto, indígena shipibo.
Por isso repetem que agora vivem no “Novo Vraem”. O Vale dos rios Apurímac, Ene e Mantaro (Vraem) é a região de maior produção de cultivos ilegais de folhas de coca no Peru, onde o narcotráfico opera e se aliou a terroristas remanescentes do Sendero Luminoso. É também conhecida como uma zona livre, pois, apesar das operações militares e policiais, os cultivos ilícitos não foram completamente erradicados.
Para o líder ashaninka Reyder Sebastián, a construção da rodovia traria ainda mais caos para a região, sobretudo porque, até o momento, os indígenas não foram consultados sobre o projeto. “Nós queremos trabalhar com o Estado para ver de que maneira podemos encontrar uma melhor solução para conectar nossos povos, sem prejudicá-los”, disse Reyder, o pinkatsari, como são conhecidos os grandes chefes da sua etnia. Ao contrário dos representantes da comunidade shipibo do rio Abujao, ele pode falar com maior tranquilidade, pois vive na cidade de Pucallpa.
Reyder destaca que denunciou mais de uma vez a falta de segurança presente no Abujao, mas as autoridades não fazem nada. Mesmo agora, com a possibilidade de uma rodovia naquela região, também somos ignorados. “Eles não nos olham como sujeitos com direitos, mas sim como objetos”, diz o pinkatsari.
Os números retratam em branco e preto o que Reyder Sebastián aponta. Segundo a Comissão Nacional para o Desenvolvimento e Vida sem Drogas (Devida), no distrito de Callería, onde se encontra o rio Abujao, foram registrados 847 hectares de cultivos ilegais de folha de coca em 2019, um valor um pouco menor do que os 991 hectares de 2018, mas ainda significativamente alto, diante dos 271 existentes em 2016. O Instituto del Bien Común (IBC) estimou que 30% desse total estaria concentrado na bacia de Abujao.
A HISTÓRIA SE REPETE
De acordo com os depoimentos coletados, a maior parte do plantio e do processamento da droga ou da pasta básica de cocaína é realizada pelos colonos. No entanto existem povos indígenas ashaninkas e shipibos que possuem pequenos pedaços de terra com plantações de folhas de coca e que vendem suas colheitas para esses terceiros, também conhecidos como ‘forasteiros’. “Fazem isso por necessidade. Por exemplo, na pandemia do ano passado, não podíamos comer apenas o milho e a banana que plantávamos. Isso ajudou muitos irmãos a sobreviverem”, aponta Eduardo, indígena ashaninka.
No último relatório completo de monitoramento da Devida publicado em 2018, a bacia de Abujao já era citada como uma nova área de expansão da coca. O rio era inclusive considerado uma das principais rotas usadas pelos narcotraficantes para levar a droga para Cruzeiro do Sul. Segundo fontes da Direção Antidrogas da Polícia Nacional do Peru (Dirandro), a rota Abujao – Cruzeiro do Sul é usada ao menos desde o início de 2010 para esse fim.
Quanto mais você se aproxima da fronteira com o Brasil, maior o perigo. No entanto em toda a bacia de Abujao são sentidos os efeitos do tráfico de drogas. “Todos os dias vemos os traficantes de drogas passando pela comunidade”, diz Juan, um indígena shipibo que vive próximo da entrada do rio Abujao. “Às vezes atracam seus barcos para nos pedir peixe ou para comprar comida e nos pagam em dólares. Temos de aceitar. Mas a situação está piorando.”
Jorge Pérez, um indígena ashaninka, se lembra de que algumas comunidades pensavam que o cultivo da folha de coca resolveria seus problemas. “‘Vocês são pobres porque são tolos, com isso vão ter dinheiro’, diziam-lhes.” Para ele, está acontecendo a mesma coisa hoje em Abujao.
“Às vezes, encontramos mochileiros (carregadores) que levam a droga até o Brasil ou vamos caçar e encontramos uma pista [clandestina]. Se ouvirmos o som do teco-teco, é melhor sair dali. Inclusive temos medo de encontrar um poço de maceração, porque achamos que podem nos ferir”, diz Edmundo, um indígena shipibo.
“Você acredita que nossa situação vai melhorar com a rodovia?”, pergunta Jorge Pérez. “Por exemplo, em Satipo, onde a rodovia chega, serviu para trazer água e luz, o que é bom. Mas e o resto? Não vi nada além da pobreza”, acrescenta. Para Pérez, a rodovia foi utilizada para retirar os recursos naturais com maior rapidez e para promover a migração de pessoas atraídas pelo cultivo da folha de coca. “Não têm nem árvores para fazerem suas casas”.
IMPACTO AMBIENTAL
David Salisbury, da Universidade de Richmond (EUA), aponta que a via planejada cruzaria até 17 vezes rios e encostas do lado peruano. “Sabemos qual é o impacto desse tipo de construção pelo que aconteceu em outras áreas rurais e fronteiriças amazônicas, onde o desmatamento, o tráfico de terras, a extração ilegal de madeira e a caça ilegal da fauna aumentaram”, afirma Salisbury.
“Precisamos ver a região como um ecossistema contínuo. As áreas naturais não podem mais ser vistas como ilhas”, acrescenta Pedro Tipula, do Instituto del Bien Común (IBC).
A isso se acrescenta que as comunidades indígenas shibipas e ashaninkas que seriam afetadas ao longo da via até a data não foram incluídas nas discussões, diz Berlin Diques, presidente da Organização Regional Aidesep Ucayali (ORAU). “Se temos conhecimento de algo, é pelos meios de comunicação. Sabemos que este governo regional iniciou um acordo com as autoridades do Brasil, que até apresentou o caso no Congresso, mas os povos indígenas ainda não foram consultados”, garante o líder.
Jorge Pérez lembra que a maioria da população ashaninka e shipiba não concorda com a rodovia, por isso exige a presença imediata do Estado em Abujao. “Essa região era tranquila, mas sempre vivemos com uma pressão sobre o pescoço. Há 20 anos, eram os madeireiros, depois chegaram os mineradores ilegais e agora os narcotraficantes”, enumera Jorge. “Em breve, será a rodovia. E o que acontece com a população?”.
Este projeto tem o apoio de InquireFirst e do Departamento de Educação Científica do Instituto Médico Howard Hughes (HHMI).
Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2021/04/criacao-de-rodovia-na-amazonia-ameaca-disparar-a-violencia-no-lado-peruano.shtml[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]