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Por Guilherme Henrique e Ana Magalhães
Repórter Brasil
24 de junho de 2021
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Inquéritos da Polícia Federal revelam como funciona o esquema de lavagem do metal, que inclui atravessadores, lucrativas empresas do setor financeiro e marcas internacionais. Legislação protege compradores, o que dificulta o combate ao garimpo ilegal.
(Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)
[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_column_text]Ao embarcar em um ônibus comercial em Boa Vista, Roraima, rumo a Manaus, no Amazonas, Raimundo não fazia ideia de que estava sendo aguardado por agentes da Polícia Federal na rodoviária. Quando chegou a seu destino, foi surpreendido pelos policiais, que o investigavam por conta de uma denúncia de tráfico de cocaína.
A droga não foi encontrada com Raimundo, mas ele carregava consigo duas barras de ouro com peso aproximado de 800 gramas, retirados da Terra Indígena Yanomami – fruto de uma extração ilegal, segundo a legislação brasileira, que poíbe a exploração mineral em áreas indígenas ou de reserva. A encomenda tinha como destinatário o taxista Paulo Clemente Lopes, apontado pela PF como representante da empresa Ourominas em Manaus.
Loja HStern no Manauara Shopping, em Manaus (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)
Antes desse flagrante, que ocorreu em abril de 2015, a Ourominas e seu representante, Paulo Clemente, já estavam na mira dos policiais. Ele fora citado por um atravessador de ouro que, ao ser abordado por policiais militares em uma viagem de ônibus na divisa entre Roraima e Amazonas, afirmou que os R$ 90 mil em dinheiro que carregava – parte do valor alojado na cueca – eram fruto da venda de 1 quilo do metal para o funcionário da Ourominas.
Raimundo e o atravessador pego com dinheiro nas partes íntimas foram a Manaus como funcionários da empresa Gold Joias, uma das dezenas que adquire e comercializa ouro extraído da TI Yanomami na chamada Rua do Ouro, em Boa Vista. Conversas telefônicas mostram intensas negociações entre Paulo Clemente, da Ourominas, e os donos da Gold Joias: Andreia Cavalcanti Lima e Manoel Pereira Souza Neto. Todos foram denunciados pelo Ministério Público Federal (MPF) em 2017 e respondem na Justiça por crime contra a ordem econômica. A loja segue funcionando normalmente. A Ourominas, idem.
Inquéritos da Polícia Federal obtidos pela Repórter Brasil por meio da Lei de Acesso à Informação revelam algumas das diversas empresas envolvidas na compra do ouro que sai da TI Yanomami. Somados, os inquéritos acumulam mais de 5 mil páginas reveladoras sobre como a comercialização do metal ganha um verniz de legalidade, mesmo tendo uma origem ilegal.
Crédito: Shake Conteúdo Visual
Há tanto pequenas lojas de ouro, como a Gold Joias, a DU Gold, Naza Joias e Itaituba Metais, quanto empresas maiores, com sede em São Paulo e no Rio, envolvidas no esquema. Além da Ourominas, são suspeitas de irregularidades a Dillon, a Carol, a FD’Gold e a Coluna, as chamadas Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários (DTVMs) – empresas pertencentes ao sistema financeiro e que têm autorização do Banco Central para aquisição do metal. Uma grande joalheria, a HStern, também foi mencionada em pelo menos dois momentos nas investigações dos delegados federais.
Os documentos também lançam luz sobre como funciona o esquema clandestino. Primeiro, parte do ouro extraído ilegalmente dos Yanomami vai diretamente aos países vizinhos (Venezuela, Suriname e Guiana Francesa) para ser vendido. Outra parte segue para Boa Vista, onde é comprado pelas pequenas joalherias da Rua do Ouro – mesmo sem terem a permissão do Banco Central para a aquisição do metal.
Estes atravessadores, por sua vez, costumam ir a Manaus ou a Itaituba (Pará), onde o metal é vendido para as DTVMs. A legalização acontece principalmente nessas duas cidades de forma “grotesca”, nas palavras do procurador do MPF em Itaituba, Paulo de Tarso. O atravessador, ao vender para uma DTVM, preenche, manualmente, uma nota fiscal declarando que aquele ouro saiu de um garimpo legalizado – as chamadas Permissões de Lavras Garimpeiras, autorizadas pela Agência Nacional de Mineração (ANM). Como não há garimpos legais em Roraima, atravessadores declaram que o ouro da TI Yanomami saiu de garimpos do Pará e do Amazonas.
Com a nota fiscal em mãos, com uma origem falsa, as DTVMs já estão de posse de um ouro “legalizado”. A partir daí, ele é comercializado livremente – vendido tanto para instituições financeiras quanto grandes joalherias, nacionais e estrangeiras.
Essas cinco DTVMs aparecem, em diferentes contextos, nos documentos da PF que foram fruto de três grandes operações conjuntas de combate ao ao garimpo ilegal de extração de ouro da TI Yanomami: Xawara (2012), Koxi (2015) e Tori (2017), também usadas como base para acusações do Ministério Público. A investigação inédita da Repórter Brasil mostra que o ouro com sangue Yanomami circula livremente, beneficiado pela frágil legislação que regulamenta o setor.
Grande área de garimpo com dezenas de barracos na região do rio Uraricoera na TI Yanomami (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)
A Lei 12.844/2013, que regula a compra, venda e o transporte do ouro no país, afirma que a venda do metal acontece a partir da boa fé do vendedor – isentando, desta forma, qualquer responsabilidade dos compradores. Além disso, a informação sobre a origem do ouro é autodeclaratória (pelo vendedor), no momento do preenchimento da nota fiscal, o que torna o esquema fácil de ser fraudado.
“A justificativa dos compradores de ouro [sobre a sua inocência] acontece por conta disso [da lei], a responsabilidade é imputada a quem está vendendo”, afirma o procurador da República Paulo de Tarso. “O dono de uma DTVM que compra ouro pode adquirir esse metal de origem ilegal porque ele tem a boa fé presumida, e a responsabilidade de dizer de onde vem o ouro é do vendedor. Resumindo: uma empresa como a Ourominas é a compradora e quem vendeu foi quem mentiu, segundo a legislação”, conclui.
Além de criticar os marcos legais do mercado do ouro no Brasil, o procurador também reprova: a falta de fiscalização por parte da ANM sobre as Permissões de Lavra Garimpeira e as transações do metal, a emissão de licenças ambientais (municipais e estaduais) para os garimpos (atividade considerada, por lei, como de baixo impacto) e o fato de o Banco Central fiscalizar apenas as DTVMs (o que exclui as pequenas empresas intermediárias). “Temos uma legislação muito truncada”, critica o procurador em entrevista à Repórter Brasil.
Na chamada Rua do Ouro, em Boa Vista, a Gold Joias é uma das dezenas de lojas que comercializa ouro extraído ilegalmente da TI Yanomami (Imagem: Google Street View)
Pelo menos 49 toneladas de ouro ilegal do país foram “esquentadas” de 2019 a 2020, ou seja, tiveram sua origem acobertada e foram introduzidas no comércio como produto legal, de acordo com estudo da Universidade Federal de Minas Gerais feito a pedido do MPF. Essa lavagem do metal gerou um prejuízo socioambiental no valor de R$ 9,8 bilhões para a Amazônia, segundo os pesquisadores.
As menções à HStern
Considerada uma das maiores joalherias do mundo, a HStern é citada por Paulo Clemente, da Ourominas, em uma conversa interceptada pela PF. A empresa fundada no Rio de Janeiro em 1945 e que hoje mantém lojas em Nova York, Moscou e Londres, é conhecida por produzir peças luxuosas, já usadas por Angelina Jolie e Beyoncé. Anéis em ouro da marca chegam a custar R$ 29 mil. Mas parte dessa produção da Hstern tem lastros com o metal extraído da TI Yanomami.
Em uma conversa ocorrida em abril de 2015, gravada pelos policiais, Paulo Clemente pede a Andreia Cavalcanti Lima, proprietária da Gold Joias, de Boa Vista, que separe 5 quilos de ouro para uma viagem a São Paulo a ser feita proximamente. Nessa viagem, Paulo Clemente afirma estar agendada uma reunião “com o pessoal da HStern”, sem especificar com quem seria o encontro.
Trechos de inquéritos da Polícia Federal que citam as investigações sobre a HStern
Em outra evidência, o sócio e fundador da Ourominas, Juarez de Oliveira Filho, também cita a HStern em um depoimento que deu aos investigadores. Quando questionado pela PF se negociava ouro com a joalheria, ele não negou, dizendo apenas que “vendia muito pouco” à empresa.
Apesar da conversa gravada, Paulo Clemente disse à PF não se recordar do diálogo com Andréia e que tampouco conhecia representantes da HStern. Nenhum funcionário da H.Stern foi ouvido pela PF ao longo do inquérito policial.
Questionada sobre as negociações com a HStern, a Ourominas informou que “as informações comerciais são resguardadas pelo sigilo fiscal e bancário”. A HStern não respondeu os insistentes contatos, por e-mail e telefone, feitos pela Repórter Brasil.
O lobista milionário
Se, por um lado, o ouro ilegal extraído de terras indígenas pode estar nas vitrines de uma luxuosa loja de joias, por outro, está enriquecendo diferentes atores envolvidos no esquema. Um dos principais núcleos seriam as DTVMs. A Repórter Brasil analisou os balanços financeiros de três DTVMs que já foram investigadas pela Polícia Federal. A que teve maior rentabilidade no ano passado foi a F.D’Gold: a empresa declarou ter lucro líquido de R$ 32,8 milhões em 2020.
O seu dono, Dirceu Frederico Sobrinho, também é proprietário de uma pequena fortuna fruto de décadas de atuação em garimpos. Em 2018, ele foi candidato a 1º suplente do senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA), declarando ter patrimônio no valor de R$ 20,3 milhões. Além de apartamentos em São Paulo e fazendas no Pará, seus bens incluem uma retroescavadeira (com valor declarado de R$ 450 mil) e 50% das cotas da F.D’ Gold, com valor de R$ 2 milhões.
Edifício Barão do Serro Azul, na Avenida Paulista, onde fica a sede da F.D’Gold; empresa foi a que teve maior rentabilidade em 2020 entre as três DTVMs investigadas (Imagem: Google Street View)
Além da F.D’ Gold, Dirceu Sobrinho é dono da D’Gold e da Mineradora Ouro Roxo. Ele também tem 32 permissões de lavra garimpeira, sendo 29 em Itaituba e outras três em Jacareacanga, no Pará, obtidas entre 1995 e 2007. A cidade paraense tem sido alvo de ações do garimpo ilegal nas Terras Indígenas Munduruku, como tem noticiado a Amazônia Real.
“Dirceu controla quase toda a cadeia, já que é dono de garimpo, dono de lojinhas compradoras e dono de uma das maiores DTVMs do país”, afirmou uma fonte que preferiu não se identificar.
Desde 2013, Sobrinho preside a Anoro (Associação Nacional do Ouro), entidade que congrega empresas filiadas do setor e uma das mais atuantes quando o assunto é a liberação do garimpo em terras indígenas.
O empresário tem bom trânsito entre representantes do primeiro escalão do governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Ele esteve com o vice-presidente Hamilton Mourão em julho de 2019 para defender o garimpo em terras indígenas. A visita a membros do Palácio do Planalto se repetiu dois meses depois, em encontro com Onyx Lorenzoni (Secretaria-Geral), Ricardo Salles (então ministro do Meio Ambiente) e o general da reserva Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), como revelou a revista Época.
“Dono da F.D’Gold DTVM, a terceira maior arrecadadora de CFEM [imposto] sobre a exploração de ouro nos primeiros quatro meses de 2020 em todo o país, o presidente da Anoro está à frente do principal lobby para a legalização dos garimpos, atividade que conhece desde os anos 1980”, afirma estudo do Instituto Escolhas, organização que atua na defesa de uma melhor regulação do setor e rastreabilidade do minério.
A legislação brasileira proíbe a exploração mineral em áreas indígenas, mas inquéritos da PF investigando apenas o garimpo na TI Yanomami somam mais de 5 mil páginas (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)
Sobrinho, que já foi secretário de Meio Ambiente de Itaituba, é réu na Justiça por danos ambientais na Área de Proteção Ambiental do Tapajós, nos municípios paraenses de Jacareacanga e Itaituba.
No processo que respondia por “crimes de lavagem ou ocultação de bens”, o lobista conseguiu um habeas corpus, em 2019, para arquivar investigação da PF sobre movimentações financeiras atípicas detectadas pelo Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) nas contas da F.D’ Gold entre 2013 e 2014.
“Há uma dificuldade para se produzir provas [para incriminar os compradores ilegais]”, lamenta Larissa Rodrigues, gerente de projetos do Instituto Escolhas. “A Polícia Federal chega em uma lojinha em Itaituba, que sabe que tem fraude, mas encontra um calhamaço de papel, com vários números de Permissão de Lavra Garimpeira. Você teria que fazer uma fiscalização em todas elas para produzir provas, só que o ouro está vindo de outro lugar. Sem rastreabilidade do ouro, que hoje não existe, não tem o que fazer”.
A especialista afirma ainda que, muitas vezes, os donos de garimpos legais incentivam a exploração do metal em áreas proibidas para “lavar o ouro” – e garantir seus gramas no bolso. “É parecido com o que acontece com a soja e com o gado. Você mistura a soja ou o gado produzidos na área ilegal, mistura com os da legal e já não se sabe quem é quem”.
A pesquisadora destaca ainda a facilidade de transportar o metal e sua valorização nos últimos anos, o que incentiva o atividade ilegal. “Se com tora de madeira, daquele tamanho, tem fraude, imagina com o ouro, que você põe no bolso”, analisa.
Investigação detalhou como a comercialização do ouro ganha um verniz de legalidade, mesmo tendo uma origem ilícita (Foto: Pixabay)
Há também um outro elo na cadeia que dificulta a fiscalização e as investigações do setor: são os chamados Postos de Compra de Ouro, que funcionam como “braços” das DTVMs, estabelecidos em locais fora da sede da empresa – predominantes em cidades como Manaus ou Itaituba. O problema é que os postos de compra podem ser operados por outros CNPJs, o que torna a cadeia mais complexa.
Em nota, Dirceu Sobrinho afirmou que suas companhias “seguem rigorosamente todas as leis vigentes e não compactuam com a extração ilegal do ouro, combatendo ativamente qualquer ação irregular e/ou ilegal” e que “todas as movimentações das companhias foram detalhadas e esclarecidas, não havendo assim, precedentes para manter o curso de uma investigação”. Sobrinho afirmou ainda, por meio de sua assessoria de imprensa, que “é preciso focar em regulamentar a atividade garimpeira nas áreas permitidas, respeitada a legislação vigente. A regularização é uma prioridade de todo o setor e também deve ser da sociedade brasileira”. Leia aqui a nota na íntegra.
As tramas da Ourominas
Criada no início dos anos 1980, quando Juarez de Oliveira Filho começou a ganhar dinheiro como garimpeiro em Mato Grosso, a Ourominas tem hoje mais de 80 lojas espalhadas pelo país. Com sede em São Paulo, mas com os chamados Postos de Compra de Ouro em cidades como Itaituba (PA) e Peixoto de Azevedo (MT), a empresa teve lucro líquido declarado de R$ 498 mil no primeiro semestre de 2019, segundo balanço contábil divulgado pela empresa.
O empresário acumula bons resultados de sua atuação no setor, mas também pendências na Justiça. Oliveira Filho é réu em pelo menos seis processos que tramitam na jurisdição do TRF 1, que envolvem trabalho análogo à escravidão, dano ambiental, falsidade ideológica, contrabando e crime de lavagem ou ocultação de bens.
A empresa também foi denunciada pelo MPF em uma ação civil pública em julho de 2019, acusada de adquirir ouro ilegal da região de Óbidos (Pará), próxima à Terra Indígena Z’oé. Na ocasião, o braço da Ourominas em Santarém comprou quase 611 quilos do metal ilegal, em operações que totalizaram cerca de de R$ 70 milhões.
Segundo a Força-Tarefa da Amazônia, o Posto de Compra de Ouro da Ourominas em Santarém tinha um esquema montado para facilitar a lavagem do metal: trata-se de um banco de dados com as informações referentes a garimpos legalizados a serem usadas nas notas fiscais para fraudar a origem do minério ilegal. Neste caso, quem preenchia a origem fraudulenta era a própria compradora (a Ourominas), facilitando a vida do vendedor.
O sócio majoritário da Ourominas também foi alvo da operação Minamata, deflagrada pela PF em 2017 para investigar a possível cooptação da Cooperativa de Garimpeiros do Lourenço Ltda (Coogal) por políticos e empresários, dentre eles Juarez de Oliveira Filho. Trabalhadores da cooperativa foram encontrados em condições análogas à escravidão por auditores fiscais do Trabalho (Ministério da Economia), e há indícios de que a exploração em Calçoene (Amapá) tenha contaminado os rios da região com a utilização do mercúrio.
Os documentos relativos à TI Yanomami levantam ainda a suspeita de que empresários da Ourominas possam ter se beneficiado de informações privilegiadas ao longo das investigações sobre o garimpo ilegal na região. Em 2015, na madrugada antes de ocorrer a operação de busca e apreensão da Polícia Federal, Juarez pediu que Aquiles Pereira Salerno Junior, também sócio da empresa, fosse a um dos escritórios para “verificar se estava tudo certinho” porque “com certeza os policiais iriam lá”.
Uma hora depois, uma funcionária da Ourominas, esposa de Paulo Clemente, telefonou para o número 2 da empresa detalhando a busca feita pela PF em sua casa. Aquiles pede que ela apague todas as ligações dos celulares. À tarde, Paulo Clemente telefona para Aquiles e diz ter negado qualquer vínculo empregatício com a Ourominas, mas revela que “o sufoco foi muito grande”.
Entre os sócios da Ourominas, apenas Aquiles Salerno foi denunciado pelo MPF à Justiça na operação Warari Koxi, por tentativa de destruição de provas. A PF descobriu que a esposa de Paulo Clemente entregou o próprio celular na busca e apreensão, mas escondeu o aparelho do marido.
A dificuldade em responsabilizar criminalmente algumas empresas também passa pelo fato de que o dono da Ourominas, por exemplo, está em São Paulo. Ele não compra diretamente. Ele tem um parceiro local para sujar as mãos. Se der errado, ele vai dizer que não sabia
PAULO DE TARSO
O também procurador da República Alisson Marugal, do MPF de Roraima, especializado na questão indígena, concorda na dificuldade de se produzir documentos que incriminem grandes empresários envolvidos no garimpo ilegal. “Há uma falha nas investigações que ainda não se aprofundaram nesses grandes personagens. Há empresários do ramo aéreo, políticos… Por outro lado, é preciso dizer que existe um número muito grande de pessoas que se dedicam ao garimpo. Quando desarticulam uma célula criminosa, aparecem três ou quatro no lugar. É preciso mais eficiência, sobretudo em pessoas graúdas”, afirmou à Repórter Brasil.
A Ourominas afirmou, em nota, que “após longa fase inquisitorial e investigativa que se processa durante a fase do inquérito policial foi concluído que a empresa OM e muito menos seus sócios tiveram participação nas condutas até então investigadas, e por isso não fazem parte da ação penal, ou seja, não são réus no processo”.
No entanto, levantamento no TRF 1 revela que Aquiles Salerno, número 2 da empresa, é réu em pelo menos dois processos: um por “crimes contra a ordem econômica” e outro por “crimes de lavagem ou ocultação de bens”. Além de Salerno, Paulo Clemente Lopes também é réu por “crimes contra a ordem econômica”. Sobre esses processos, a Ourominas limitou-se a dizer que eles correm em sigilo, e que no caso de Salerno, “todas as informações serão prestadas em juízo”.
Questionada novamente sobre os processos envolvendo um dos sócios da empresa, a Ourominas repetiu que “todas as informações serão prestadas em juízo”. A empresa disse ainda que “não pactua com trabalho análogo a escravidão” e que “conforme decisão judicial, todos os bens foram restituídos/desbloqueados”. Leia aqui a nota na íntegra.
Além do mencionado envolvimento da Ourominas e da HStern na compra de ouro ilegal, o inquérito da operação Warari Koxi também aponta para outra DTVM: a Dillon, que declarou lucro líquido de R$ 692 mil no 2º semestre de 2020. A empresa utilizou a loja Naza Joias, em Boa Vista, como “sucursal” para adquirir ouro extraído da TI Yanomami.
“A Dillon, direta e indiretamente, financiava a atividade ilegal de extração de minérios no Estado de Roraima”, afirma a Polícia Federal em um dos inquéritos. Documentos encontrados na sede da empresa no Rio de Janeiro mostraram que a DTVM fez transferências bancárias a representantes da Naza Joias e da Du Gold, lojas de Boa Vista apontadas como compradoras de ouro Yanomami.
Eduardo Freire da Silva Filho, sócio da Du Gold, foi denunciado à Justiça por crime contra o meio ambiente na operação Xawara. Presidente e sócio majoritário da Dillon, Luis Claudio Lins Fabbriani é réu por lavagem de dinheiro e ocultação de bens e trabalho em condição análoga à escravidão no caso da Coogal, no Amapá.
Maria Nazaré, da Naza Joias, e Eduardo Freire, da Du Gold, informaram por meio dos seus advogados que não vão se manifestar. Francisco Picorelli, Diretor de Compliance da Dillon, informou por telefone que o caso estava sendo analisado pelos sócios da empresa. Até o momento, não houve resposta aos questionamentos da Repórter Brasil.
Notas fiscais e rastros do esquema ilegal
As investigações sobre um único atravessador ajudaram a PF a conseguir algumas das poucas provas produzidas nestas operações. São notas fiscais encontradas na casa de Rafael Vieira, funcionário da Itaituba Metais, vendendo o ouro da TI Yanomami para três DTVMs: R$ 44 mil (356g) para a Carol DTVM, sediada em São Paulo, R$ 20 mil (170g) para a Coluna DTVM, com sede no Rio de Janeiro e R$ 8,8 mil (79g) para a D’Gold, um dos braços empresariais de Dirceu Sobrinho.
Diferentemente dos casos anteriores, em que os postos de compra estavam em nome de terceiros, neste caso o posto está em nome do próprio Dirceu Sobrinho e de sua filha, Sarah Almeida Frederico.
Nota Fiscal encontrada na casa de Rafael Vieira; segundo a PF, documento indica que ouro da TI Yanomami foi negociado com DTVM (Reprodução)
Este episódio ilustra bem o que procuradores e especialistas criticam sobre a fragilidade da lei – que protege os compradores – e a dificuldade de produção de provas. Apenas os funcionários da Itaituba Metais, Rafael Vieira e o dono Leandro de Sousa Rodrigues (vendedores), foram denunciados pelo Ministério Público na operação Tori, por usurpação de bens pertencentes à União. As DTVMs (compradoras) passaram incólumes.
A Coluna DTVM afirmou à Repórter Brasil que “desconhece as alegações de compra de ouro proveniente de reservas indígenas” e que não foi notificada pela Polícia Federal ou Ministério Público. Leia aqui a nota na íntegra. A Carol DTVM não respondeu aos questionamentos da reportagem.
Dirceu Sobrinho também não respondeu às perguntas sobre as notas fiscais de compra de ouro da Itaituba Metais. Por meio de seu advogado, Leandro de Sousa Rodrigues, fundador da empresa, preferiu não se manifestar. A defesa de Rafael Vieira não foi encontrada.
O Banco Central informou à reportagem que não iria se pronunciar.
A assessoria de imprensa da ANM alegou que não poderia responder, pois não tinha ciência dos casos envolvendo as lavras garimpeiras usadas para “lavar” o ouro ilegal.
“Há um lobby fortíssimo, porque esses empresários, vinculados à Anoro [Associação Nacional do Ouro], estão por trás da legislação que regulamenta o setor. Eles desenharam o sistema, que acabou retirando a responsabilidade criminal deles”, afirma o procurador Tarso, destacando que o problema é que a legislação isenta os compradores – e eles são muitos.
Se você chegou até aqui e achou que são numerosos demais os envolvidos no esquema, você está certo. Segundo especialistas, a estrutura do garimpo ilegal na TI Yanomami funciona com base em uma série de núcleos, com diversas pessoas enriquecendo em cada um deles. No que tange ao universo das pequenas empresas atravessadoras, muitos dos nomes investigados pela Polícia Federal ou denunciados pelo MP não estão aqui mencionados. Nosso foco foram as empresas maiores, as DTVMs e seus respectivos atravessadores.
Justamente por conta da complexidade da logística, bem como da profusão de atores envolvidos no esquema, o procurador da República em Roraima, Alisson Marugal, acredita que só “com uma verdadeira operação de guerra para acabar com o garimpo ilegal na terra indígena”.
*Colaborou: Piero Locatelli
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