Jornal O Globo
Eduardo Gonçalves e Aline Ribeiro
02 de novembro de 2021
Amazônia brasileira
Presença de narcotraficantes nas terras dos Yanomamis, em Roraima, e dos Mundurukus, no Pará, colocam a floresta em um novo nível de ameaça
BRASÍLIA e SÃO PAULO — Algumas das principais facções criminosas que dominam a venda de drogas nos estados do Sudeste estão diversificando sua carteira de negócios ilícitos no Norte do país. Elas passaram a explorar garimpos ilegais localizados em diferentes pontos da floresta amazônica. As autoridades já detectaram pontos de atuação em duas das maiores reservas indígenas do país, a dos Yanomamis, em Roraima; e a dos Mundurukus, no Pará.
A Divisão de Inteligência e Captura (Dicap) do sistema prisional de Roraima tem uma lista de dez foragidos vinculados a uma facção criminosa paulista que teriam se refugiado em garimpos na selva. Armados com pistolas, escopetas e fuzis, eles começaram a ganhar dinheiro fazendo a segurança dos garimpeiros contra indígenas e piratas até que uma de suas lideranças, Dheys Vieira da Silva, decidiu tomar o controle de um campo de extração de ouro na região do Rio Uraricoera, no início deste ano. As informações chegaram ao Dicap por meio de um bandido capturado em julho e duas denúncias anônimas feitas em setembro que relatavam que o grupo de Dheys “estava forte” no local.
— Temos já informações que os faccionados estão dominando a extração, com maquinário e tudo. Outros ficam só na segurança. Alguns garimpeiros não dão moleza, mas eles vão se infiltrando até verem o melhor momento e tomarem conta da região — disse o chefe do Dicap, subtenente Roney Cruz.
Com duas passagens por tráfico de drogas, Dheys Silva fugiu em 2018 do presídio do Presídio Agrícola de Monte Cristo, que um ano antes foi palco de um dos maiores massacres do país em que 31 detentos foram mortos por membros da facção paulista – na época, a organização criminosa estava em guerra contra uma facção do Rio de Janeiro e outra do Amazonas. Do mesmo presídio, escapou Janderson Edmilson Alves, outro membro da facção que reapareceu numa área de garimpo em terra Yanomami em maio.
Num vídeo que circulou em grupos de WhatsApp, ele aparece junto com um grupo de dez bandidos armados com fuzis e balaclavas subindo o rio Uraricoera e distribuindo ameaças aos indígenas.
— Hoje vocês vão ver quem manda no bagulho. Nóis é a guerra, neguinho — diz um dos comparsas na gravação.
Em fotos postadas nas redes — hoje em posse da polícia —, o bando exibe armas de grosso calibre com a legenda “família do 1533”, uma das siglas da facção paulista.
Naquele mês, a comunidade Yanomami de Palimiú foi alvo de dezenas de ataques a tiros que só foram interrompidos após a chegada da Polícia Federal e Força Nacional.
— A gente viu que não eram só garimpeiros, mas gente de facção. Nossas terras estão sendo invadidas desde 2019, mas neste ano ficou fora de controle. A terra Yanomami está entrando em colapso — afirmou Junior Hekurari Yanomami, presidente do Conselho de Saúde Indígena local.
Segundo ele, os índios só saíram ilesos porque corriam para a mata quando percebiam a aproximação das embarcações — um deles foi ferido com uma bala de raspão na cabeça.
Janderson Alves só viria a ser capturado em agosto, em Boa Vista. Segundo as investigações da polícia, ele precisou fugir da zona de garimpo, onde dificilmente seria pego, por causa de um desentendimento com lideranças da facção – a suspeita é que ele teria matado um comparsa sem consultar o chamado “tribunal do crime”. Alves era conhecido no mundo da criminalidade de Roraima. Além de ter fugido mais de cinco vezes da prisão, era apontado como um dos suspeitos pelo roubo de cerca de cem fuzis de uma base do Exército da Venezuela, que fica na fronteira com o Brasil. As armas foram parar na mão dos garimpeiros e traficantes da região.
Um dos primeiros indícios da chegada do crime organizado na selva ocorreu durante a Operação Erebo da Polícia Federal, que revelou a atuação da facção paulista no sistema penitenciário de Roraima em 2018. Policiais interceptaram a ligação de um “disciplina” da organização criminosa Sebastião Silva, o Bozo, falando sobre “questões relacionadas à expansão da facção para regiões de garimpo em Roraima”, conforme o relatório policial.
— Até onde conseguimos chegar, não existe uma atuação organizada da facção, mas sim de faccionados optando por ir ao garimpo. Quando ele vai, leva drogas e armas para vender. Como conhece arma e é destemido, sua presença ali torna o garimpo mais perigoso — afirmou o superintende da Polícia Federal em Roraima, José Roberto Peres.
No interior do Pará, a situação também é tensa entre criminosos armados e indígenas Mundurukus.
— Vivemos assustados. Tem muita gente estranha chegando em nossas terras agora, com armas e drogas mais pesadas. Aviões cortam o céu aqui de todo o canto — diz uma indígena munduruku que mora em Itaituba (PA) e não quis se identificar por medo de represálias.
Na mesma cidade, em julho de 2019, agentes da Polícia Federal acompanharam a aterrissagem de um avião bimotor carregando uma carga de 580 quilos de cocaína, além de dois fuzis e uma pistola 9 MM. Essa apreensão levou os investigadores a descobrirem a atuação de uma quadrilha de narcotraficantes de Santa Catarina que planejava comprar garimpos de ouro no Pará.
Segundo a denúncia do Ministério Público Federal, o líder da quadrilha, Edson Silva, chegou a negociar com o prefeito de Itaituba, Valmir Climaco, a compra de um garimpo chamado “Palmares”, que se situa na divisa entre o Pará e o Amazonas. O valor do negócio era de R$ 4 milhões e incluía no pagamento o bimotor usado no tráfico. Conhecido por ser proprietário de diversos garimpos na região, o prefeito sempre negou a relação com o tráfico de drogas e não foi incluído na denúncia.
— Para o criminoso, o ouro ilegal é a melhor forma de lavar dinheiro no Brasil e é mais seguro do que usar postos de gasolina e fazendas. Tem um sistema falho que não registra a origem adequada do produto e que pode ser facilmente regularizado depois. E, assim, pode ser usado pelo crime organizado para legitimar e justificar um grande incremento patrimonial — afirmou o procurador de Itaituba, Paulo de Tarso, apontando um dos motivos pelos quais o crime organizado estaria interessado na atividade extrativista.
Além de usar os garimpos para se capitalizar e lavar o dinheiro, as facções criminosas também utilizam a mesma logística de escoamento dos produtos explorados na Amazônia para transportar a cocaína, que vem de países produtores, como Bolívia, Colômbia e Peru, e geralmente têm o mesmo destino final — os portos da Europa. As cargas pesadas de madeira e minérios ainda ajudam a esconder a droga dos scanners das alfândegas. Na última semana, a PF, por exemplo, apreendeu uma carga de 500 quilos de cocaína em um contêiner de manganês que saía do porto de Barcarena, no interior do Pará, com destino ao porto de Roterdã, na Holanda.
Especialistas de segurança pública dizem que a chegada do crime organizado na floresta amazônica não apenas como um agente passageiro, mas como explorador das atividades ilegais, coloca a Amazônia em um novo risco de ameaça.
— O governo Bolsonaro se elegeu com um discurso de segurança pública, mas ao fragilizar a fiscalização na Amazônia acabou permitindo a entrada de facções criminosas em territórios indígenas e áreas de garimpo. Ou seja, o discurso do governo tem fortalecido o crime organizado nessa região — afirmou o pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública Aiala Couto, que estuda a dinâmica do crime na região Norte.
Texto original disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/seguranca-publica/nos-a-guerra-crime-organizado-avanca-sobre-os-garimpos-ilegais-da-amazonia-25260890