Luna Gámez
El País
08 de outubro de 2021
Amazônia Brasileira
Quase 49 toneladas do metal extraídas no Brasil entre 2019 e 2020 procediam do garimpo irregular, controlado por poucas empresas, algumas delas já processadas na Justiça. Vários fatores – políticos ou econômicos – incentivam a exploração ilegal em terras indígenas ou protegidas da Amazônia
Em Jacareacanga, município situado no coração da Amazônia, no sudoeste do Pará, parte dos salários são pagos em ouro. A febre do garimpo emprega a maioria da população local: além dos garimpeiros, essa atividade faz proliferar a demanda por barqueiros, mecânicos e cozinheiros, assim como um aumento da prostituição.
Graças à mineração, Jacareacanga, com uma população que não chega a 7.000 habitantes, tem um PIB per capita similar ao de algumas das cidades mais ricas do Brasil, como Rio de Janeiro e São Paulo. O movimento é quase incessante no pequeno porto de Jacareacanga: a aparência improvisada e desmantelada deste fervedouro não parece corresponder às riquezas que transitam nos pequenos barcos que atravessam o rio Tapajós em busca de ouro. Como resultado, uma mancha escura que começa em Jacareacanga tinge as águas desse que é um dos principais afluentes do rio Amazonas, estendendo-se por 500 quilômetros Tapajós abaixo, conforme mostram as imagens de satélite incluídas em estudos da plataforma informativa InfoAmazonia. É o rastro da destruição, um fluido composto por mercúrio e sedimentos provenientes da mineração, que ameaça a flora e a fauna fluvial, assim como o povo indígena Munduruku, que vive às margens do rio.
As investigações cruzaram dados públicos referentes a 2019 e 2020 com cifras e origem do ouro declarado na Contribuição Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM), assim como imagens feitas por satélites, para comprovar se há realmente mineração nos lugares de procedência declarados e se podem ser vistos indícios de destruição pelos garimpos em áreas não autorizadas. Concluíram que apenas 34% da mercadoria tem origem legal, de outros 38% não foi possível constatar sua procedência, e 28% provêm de atividades irregulares, ou seja, claramente ilegais ou com evidências disso. Do total de 49 toneladas identificadas como irregulares, quase 7 eram nitidamente irregulares e movimentaram quase dez milhões de reais.
“Os casos que identificamos como irregulares se referem a tentativas frustradas de lavar esse ouro, mas tanto o que está bem lavado como o que circula num mercado clandestino sem nem sequer tentar ser lavado ou legalizado passam a ser invisíveis para o nosso estudo”, explica Raoni Rajão, coordenador do Laboratório de Gestão de Serviços Ambientais da UFMG e um dos autores. Os próprios pesquisadores apontam que os dados obtidos podem estar muito provavelmente aquém da realidade do total ilegal extraído no Brasil. “Além dos danos socioambientais, o ouro muitas vezes é usado para lavar dinheiro proveniente de tráfico de armas e drogas, grilagem de terras e corrupção”, afirma o relatório.
O lobby que alimenta o garimpo ilegal
O rastro da atividade criminal também reluz quando se observa que as cifras registradas de ouro exportado são maiores que as da produção declarada: em 2020, o Brasil exportou, segundo os registros nacionais de comércio exterior, 111 toneladas. Mas a Agência Nacional de Mineração (ANM) só foi notificada sobre 92 toneladas. Além disso, dois terços do metal identificado como ilegal provêm da atividade de apenas quatro pessoas e duas cooperativas. “Para nossa surpresa, os casos mais claros se dão em áreas que vendem bilhões em minérios e usam maquinário pesado, não são pequenos produtores”, observa Rajão. A escala industrial da extração clandestina representa uma das conclusões mais preocupantes do estudo, salienta o pesquisador.
Destes dois terços, os autores puderam rastrear que 71% correspondem a transações realizados por três distribuidoras –OuroMinas DTVM, D’Gold DTVM e Carol DTVM –, que operam nos municípios da Jacareacanga, Itaituba e Novo Progresso, todos no oeste do Pará.
“O Ministério Público Federal abriu em 30 de agosto uma ação judicial contra essas distribuidoras acusadas de lavagem de ouro ilegal, assim como de possível apropriação do patrimônio público.”
Depois da divulgação desses resultados, o Ministério Público Federal abriu em 30 de agosto uma ação judicial contra essas distribuidoras acusadas de lavagem de ouro ilegal, assim como de possível apropriação do patrimônio público, já que a riqueza mineral do subsolo brasileiro pertence ao Estado. Suas atividades nestes três municípios foram bloqueadas e poderiam gerar uma multa de aproximadamente 11 bilhões de reais.
De acordo com as investigações, Canadá, Suíça e Reino Unido são os três principais países compradores de ouro do Brasil. Os resultados desse estudo mostram que o elo mais fraco da cadeia são os mecanismos para garantir a legalidade do produto, já que se baseia na palavra do vendedor e na suposta boa fé do comprador, conforme prevê o artigo 39 da lei 12.844. “Desta forma, o próprio Estado criou involuntariamente a lacuna para que o mineral extraído de regiões proibidas pudesse entrar e circular livremente em forma legal”, salienta o relatório.
O lobby milionário do garimpo, composto por empresários e algumas figura políticas, apoia a legalização da mineração em terras indígenas mediante o Projeto de Lei 191,enviado em fevereiro de 2020 pelo presidente Jair Bolsonaro ao Congresso e ainda em tramitação. A crescente expectativa de mudança na lei, junto com o aumento do preço do ouro, foi um estímulo para a abertura de garimpos ilegais em territórios indígenas e em áreas de elevada biodiversidade.
“De acordo com as investigações, Canadá, Suíça e Reino Unido são os três principais países compradores de ouro do Brasil.”
De acordo com dados da organização MapBiomas, a área ocupada por garimpos rudimentares em áreas indígenas cresceu 495% na última década. Esta situação pode piorar se for aprovado outro projeto de lei cobiçado por Bolsonaro, o PL 490, que limita a homologação das terras indígenas à presença desses povos nos seus territórios antes da promulgação da Constituição de 1988. Ativistas dizem que esse marco temporal ignora o fato de que muitos indígenas foram perseguidos e deslocados violentamente pela colonização e pela ditadura militar. Frente a esta ofensiva legislativa que está prestes a ser votada no Congresso, mais de 6.000 membros nativos de 120 povos diferentes acamparam e fazem manifestações em Brasília desde 28 de agosto.
Os riscos para os indígenas
Entre 2017 e 2019, as atividades de extração ilegal destruíram e ocuparam mais de 3.000 hectares de selva das terras indígenas munduruku e, desde que Bolsonaro assumiu a presidência em janeiro de 2019, a área destruída pela mineração ilegal dentro do território munduruku cresceu 363%, conforme aponta o Instituto Socioambiental (ISA).
A Associação de Mulheres Munduruku Wakoborūn, que luta contra a invasão e destruição de suas terras pela mineração ilegal, foi atacada em março deste ano por várias pessoas que queimaram todos os documentos encontrados. Dois meses depois, uma ação da Polícia Federal para desmantelar garimpos em terras indígenas acabou em confrontos entre agentes e garimpeiros. Aldeias foram incendiadas, e a casa de Kabaiwun Munduruku, coordenadora da associação de mulheres, e da mãe dela, chefa da aldeia, foi incendiada. Estas são apenas algumas das constantes ameaças e agressões.
A atividade garimpeira continua, apesar de em abril o Supremo Tribunal Federal ter determinado sua paralisação nas terras munduruku para redimir os conflitos e evitar os riscos de propagação da covid-19. Desde o início da pandemia, a mineração clandestina é uma das principais preocupações dos povos originários, que tentam se isolarpara evitar contágios. Muitos deles, incluindo os Munduruku e os Yanomami – também fortemente encurralados pelo garimpo ilegal – lançaram campanhas pedindo socorro.
“A mineração ilegal deixa um rastro de devastação na Amazônia: entre 2005 e 2015,a atividade destruiu mais de 1,2 milhão de hectares.”
Além dos violentos conflitos com as populações nativas, esta atividade criminosa deixa um rastro de devastação na Amazônia: entre 2005 e 2015, a atividade destruiu mais de 1,2 milhão de hectares. De acordo com os resultados obtidos pelo MPF e a UFMG, 90% da extração ilícita se concentra na Amazônia, principalmente no Pará e Mato Grosso, onde mais da metade da mercadoria declarada foi classificada como irregular.